A luta dos trabalhadores da educação superior brasileira por uma educação
pública, gratuita, universal e socialmente referenciada sofreu mais um ataque.
Somando-se às investidas do grande capital internacional e às políticas privatistas
e mercantis do governo brasileiro, o ataque dessa vez veio da SBPC (Sociedade
Brasileira pelo Progresso da Ciência) e da ABC (Academia Brasileira de Ciências).
Instituições que outrora estiveram ao nosso lado nas jornadas pela democratização
do país e pela construção de uma sociedade justa, cuja história as atuais direções
parecem querer apagar.
Na década de 1980, preocupados em discutir a questão da universidade com
outros setores da sociedade, a SBPC uniu-se com a então Associação Nacional dos
Docentes de Ensino Superior (ANDES) e firmaram um acordo de ação comum para
levar proposições sobre a reestruturação da universidade brasileira, com base na
ampliação do ensino público e gratuito, autonomia universitária, democracia,
dotação de recursos públicos suficientes para o seu funcionamento e adequação da
universidade à realidade brasileira¹.
Em 18 de agosto de 2015, a SBPC e a ABC lançaram um manifesto, intitulado “Em defesa das universidades públicas”, buscando desqualificar a luta dos docentes das
universidades federais e o projeto de educação historicamente construído pelo
ANDES-SN. No documento, essas entidades científicas, com um discurso
aparentemente progressista, afirmam um projeto de Universidade voltado para a
lógica mercantil e meritocrática, referendados pelo Plano Nacional de Educação
(PNE) aprovado em julho de 2014, ferindo princípios democráticos e universais
assumidos anteriormente e, num momento de ampliação precarizada do acesso às
universidades, incorporam saídas privatistas como solução de vários problemas no
funcionamento das mesmas.
As soluções apontadas para a universidade brasileira, como “excelência na
diversidade”, “avaliação externa constante” e “gestão responsável”, revelam o real
interesse de direcionar a produção acadêmica ao projeto do capital, negando o
princípio de universalidade que rege essa instituição pública. Afinado com o
discurso do Banco Mundial, as entidades defendem o modelo de diferenciação das
instituições universitárias para atender aos interesses de lucratividade das
empresas, entre outras questões, aprofundando as desigualdades regionais entre
as universidades. Isso se materializa na constituição de “escolões” de terceiro grau
para formação de mão de obra, de um lado, e centros de pesquisa, de outro,
segundo a lógica capitalista da divisão social do trabalho.
Cabe considerar que a concepção de universidade expressa no manifesto da SBPC e
da ABC implica necessariamente na redefinição do trabalho docente. A proposta
trazida no documento em questão, de, supostamente, "atrair pesquisadores
talentosos", vai ao encontro da defesa, feita pelo presidente da Capes, da
contratação via Organização Social (OS). Violando-se a perspectiva de ingresso via
concurso público, isso significaria levar ao limite a precarização do trabalho
docente, a ruptura da Dedicação Exclusiva (DE) e a contratação dos docentes pelo
Regime Jurídico Único (RJU).
Este manifesto concebe os docentes enquanto prestadores de serviço para as
grandes corporações, o que significa, além da segmentação do trabalho acadêmico,
a desvalorização desses trabalhadores. O ANDES-SN, pelo contrário, defende que o trabalho docente deve ser valorizado através de salários justos, de uma carreira
que privilegie a formação continuada; da valorização do tempo de dedicação ao
trabalho acadêmico; do ingresso universal por concurso público; da paridade da
remuneração entre ativos e aposentados e de condições de trabalho que não
comprometam a saúde e a segurança desses trabalhadores.
Quanto à Carreira Docente, o ANDES-SN tem posição de intensificar a luta pela
implantação de um Plano de Carreira Única como uma das formas de combater a
tática do governo de tratar em separado as negociações da pauta do sindicato.
Destaque-se que a imposição da Lei 12.772/2012 ampliou as distorções que vêm
aprofundando a desestruturação da carreira. A estruturação da carreira defendida
pelo Andes-SN valoriza o professor federal e assegura que seja administrada no
âmbito da autonomia universitária.
No que tange à gestão universitária, em consonância com esse projeto, o manifesto
enfatiza uma postura reacionária e autoritária. Ao tratar da “gestão responsável”, é
reafirmada a necessária manutenção da supremacia do peso docente nos órgãos
colegiados, bem como em “eventuais consultas” à comunidade para, por exemplo,
escolha de seus dirigentes. Assim, o documento ignora a luta histórica de docentes,
técnicos e estudantes pela democratização da universidade pública. Certamente,
para implementar o projeto de educação expresso no manifesto da SBPC e ABC
torna-se indispensável eliminar qualquer espaço de construção coletiva e
democrática.
O Comando Nacional de Greve dos Docentes Federais do ANDES-SN, com base nos
princípios estabelecidos pela categoria docente, repudia a perspectiva de
Universidade Pública privatista e mercantil proposta no Manifesto, bem como o
ataque direto e ofensivo à luta sindical, democraticamente construída na base da
categoria docente, reafirmando a defesa da universidade pública e gratuita como
um direito social inalienável e patrimônio do povo brasileiro, que deve atender aos
anseios e necessidades da maioria da população, com vistas a contribuir para a
reparação da injustiça social à qual a sociedade brasileira tem sido submetida.
O ANDES-SN defende a necessidade da defesa de uma instituição social plural, que
respeite as diversidades. Essa riqueza cultural não pode servir de alicerce, nem
desculpa para a ampliação das desigualdades econômicas entre as diversas regiões
do país. Para isso é necessária à manutenção da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão, cujo tripé favorece a aproximação entre a universidade e a
sociedade, a emancipação, a autonomia teórica e prática, bem como torna tangível
o significado social do trabalho acadêmico.
A proposta do ANDES/SN reafirma a necessidade de ampliação da gestão
democrática das Universidades, que deve ser estruturada nos princípios da
autonomia, da participação efetiva, não apenas dos professores, mas também de
estudantes e técnicos, e submetida à avaliação externa por conselhos sociais
amplos, o que reforça o compromisso com a sociedade que as mantém, divergindo
da avaliação externa meritocrática e anti-democrática proposta pelos que
defendem um projeto privatista e mercantil para a universidade pública.
Ao vincular a submissão de parte do financiamento das IES às empresas privadas, a
SBPC e a ABC ferem esses princípios, pois permitem a ingerência direta do capital
sobre os rumos do ensino, da extensão e da pesquisa. É inadmissível a
transferência de recursos públicos para empresas privadas com o Estado
custeando a pesquisa de doutores e transferindo diretamente recursos públicos ao
setor privado. O ANDES-SN defende que a pesquisa produzida na Universidade
atenda a maioria da população e não o interesse de grupos econômicos privados.
Isso fere o princípio de autonomia didático-científica, pois submete a produção de
conhecimento ao objetivo maior das empresas, que é a produção de lucro.
O referido manifesto ainda propõe “que a língua portuguesa não deve ser
obrigatória nos concursos”, demostrando desconsideração sobre a natureza da
docência e a importância da mediação verbal no processo de ensino-aprendizagem,
revelando também uma face perversa do colonialismo acadêmico
que tomou conta desses cientistas. Não se trata aqui de negar a importância do
intercâmbio de conhecimentos entre os diversos países, ou de afirmar algum tipo
de provincianismo intelectual, mas entender que o cultivo e a defesa da língua
portuguesa colocam-se num contexto mais amplo de afirmação e valorização da
nossa cultura nesses processos de trocas mais amplos.
Na conjuntura de crise do capital, insistimos que o caminho é a ampliação e a
manutenção de uma universidade pública, na acepção plena da expressão, que
exige, como pré-condição, uma gestão democrática, autônoma e a garantia de
recursos públicos para o seu financiamento. Entenda-se isso como aqueles
recursos arrecadados pelo Estado, por meio de sistema tributário e de outros
instrumentos democraticamente estabelecidos, que sejam transparentemente
previstos e explicitados nos orçamentos públicos e que no processo de
planejamento e execução orçamentária sejam destinados ao atendimento das
prioridades sociais.
A concepção de Universidade Pública apresentada por essas entidades defende um
projeto privatista e mercadológico para a educação brasileira, deixando claro que a
aparente indignação com o corte de verbas brutal nas instituições de ensino
superior, se desfaz numa proposta de dar sustentação às políticas governamentais
de privatização e mercantilização da educação superior pública brasileira.
Por todo o exposto, a desresponsabilização do governo com a educação superior
pública fica clara nos cortes de verbas de custeio e de capital que concretamente
impactam o funcionamento das universidades federais de norte a sul do Brasil.
Considera-se que, nesse momento em que a greve dos docentes e técnicos
completa 90 dias, posicionamentos como os apresentados pela SBPC e pela ABC
objetivam desqualificar as propostas acumuladas pelo conjunto dos trabalhadores
da educação e suas organizações sindicais, e prestam um desserviço enorme à
sociedade brasileira.
O ANDES/SN permanece na defesa intransigente de um projeto de Universidade
pública, gratuita, laica, autônoma, democrática e de qualidade socialmente
referenciada. E conclama toda a sociedade brasileira a manter e ampliar a luta
contra esse projeto de privatização, mercantilização e de competição desenfreada,
fortalecendo uma Educação e Ciência à serviço de uma sociedade efetivamente
igualitária que permita consolidar políticas públicas educacionais que beneficiem o
futuro e as gerações que virão.
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¹ Cadernos Andes, nº 2, “Proposta do Andes-SN para a universidade brasileira”, 4ª edição, atualizada e revisada em 2013.
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